por aqui passa o córrego do sapateiro
ficha técnica
artigo publicado no jornal pedaço da vila, em 29 de setembro de 2020
cidade: são paulo
colaboração: michael vago
fotografias: max gonik
continuação do projeto: mapa da bacia do sapateiro
descoberta
Em uma madrugada de 2020, vendo um mapa de 1930 da Vila Mariana, tive uma enorme descoberta: ao lado da minha casa passa um córrego. Já tinha ouvido falar dos córregos ocultos de São Paulo, objetos de pesquisa do professor Vladimir Bartalini, mas não imaginava viver ao lado de um. Nesse momento fui à janela e no silêncio da noite tentei encontrar algum barulhinho de água ou vislumbre de rio na paisagem.
Ainda no mapa e com o olhar na janela, fui sobrepondo o traçado do córrego com minhas experiências de percorrer esse território familiar, e com isso percebendo que essa descoberta já se fazia evidente nos detalhes de como a morfologia da cidade se apresenta hoje, sem que eu notasse. É nessa investigação que a imagem do rio aflora de sua condição subterrânea, apagada pela construção (violenta) da cidade rodoviarista sobre as pré-existências naturais.
‘Pode-se passar constantemente pelos lugares atravessados pelos córregos, pode-se até morar em suas proximidades, sem se dar conta de que, sob variados disfarces, ali existe um curso d’água. Revelar sua existência a partir destes indícios – que normalmente escapam ao olhar comum, à cartografia convencional e às fotografias aéreas, e que só o palmilhar acurado do território pode recuperar – demanda um trabalho semelhante ao do arqueólogo ou do detetive que, a partir da espreita dos movimentos e da observação de fragmentos, busca esclarecer ou reconstituir uma cena ou um contexto.’
[Bartalini, Vladimir. Palcos e bastidores, Ainda sobre córregos ocultos.]
projeto
Alguns dias depois, me perguntei o que seria possível fazer com essa descoberta?
A vazão desse achado culminou na elaboração do projeto: ‘por aqui passa o córrego do sapateiro’, que se fez um projeto artístico de desenho (no) urbano. Nas contradições da cidade de hoje, que não nos permite romper o asfalto para fazer aflorar o córrego ao ar livre, senti a necessidade de representar esse trajeto na paisagem, buscando de algum modo tornar pública essa descoberta, ao presentificar o traçado do córrego de forma visível ao longo do bairro.
Algumas variações gráficas foram elaboradas para comunicar visualmente esse percurso, acabei optando pela produção de duas máscaras de stencil com cores complementares e chamativas: a primeira para a quadrícula dos quarteirões do bairro e ibirapuera em laranja, e a segunda sobreposta a primeira, em azul escuro, com o traçado do córrego acima da frase que dá título ao projeto: [por aqui passa o córrego do sapateiro], escrita na mesma tipografia dos letreiros do metrô de sp.
percurso
Em uma tarde de agosto de 2020, convidei dois amigos queridos [Max Gonik e Michael Vago] para participarem desse trajeto comigo, aos quais dedico aqui um agradecimento. Desde a ‘praça’ Teodoro de Carvalho até o Cebolinha do Ibirapuera, demarcarmos com stencil, sinalizações em postes e muros, trazendo ao espaço urbano um desenho de memória sobre o Córrego do Sapateiro. O trajeto está mapeado digitalmente (aqui) disponibilizado com comentários para que qualquer pessoa possa realizar esse percurso por conta própria. Os registros fotográficos em câmera analógica são de autoria de Max Gonik. Algumas situações singulares no desenho do b airro se clarificaram e tornaram intuitivas ao longo do trajeto que fizemos pelo veio d'água:
Após a sinuosa Rua Sud Mennucci, na Rua Lutfalla S. Achôa, se encontra um fragmento de espaço livre gradeado e entre muros, que revela a passagem do córrego por aquele trecho de modo visível.
O desenho disforme do grande quarteirão, configurado pelas ruas Madre Cabrini, Coronel Lisboa e Capitão Cavalcanti, repleto de vielas sem saída, lotes estreitos e compridos, tem essa forma por conta da presença do córrego, que por ali passa desde antes dos primeiros logradouros da região. No quarteirão entre as ruas Coronel Lisboa e a Rio Grande, onde hoje estão construídas casas, ficava a antiga lagoa de retenção de águas.
Ao longo da Rua Mario Cardim, que foi construída sobre o córrego, a topografia naturalmente conforma um vale, representado pelas intensas subidas e descidas das ruas Rio Grande; Botucatu; Napoleão de Barros; Uruana; Otonis e Riolândia.
Inúmeras ocupações irregulares por São Paulo se dão nas margens dos córregos, e não foi diferente com a favela Mario Cardim. Segundo o que conta Chiquinho Barbeiro há sessenta anos se deu a ocupação no lugar, após um incêndio da construção onde funcionava a ‘Casa da China’. Hoje a ‘Mario’ é habitada por mais de 750 famílias, representa uma favela consolidada no bairro, que vem sendo cercada por futuros empreendimentos imobiliários de alto padrão.
Já há tempos reparava em uma bica d’água corrente e límpida que brotava em meio aos viadutos do cebolinha (que conectam as avenidas Rubem Berta, 23 de Maio e Ibirapuera), onde vários moradores de rua se utilizam daquelas água para suas necessidades cotidianas. Quando sobrepus essa imagem ao traçado do mapa, percebi que por alí passava o córrego do sapateiro, pouco antes de adentrar o Ibirapuera e preencher os lagos do parque.
webgrafia
BARTALINI, Vladimir. Palcos e bastidores, Ainda sobre córregos ocultos. Revista Arquitextos, disponível em: https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.160/4869 acessado em 10/09/2020
O Mapa das Águas, Pedaço da Vila, disponível em: https://pedacodavila.com.br/sustentabilidade/o-mapa-da-aguas
Águas Invisíveis, Pedaço da Vila, disponível em:
https://pedacodavila.com.br/sustentabilidade/mapa-das-aguas/
MELLO, Hélio Carlos. Aqui ainda passa um rio, pelo perfil ‘a conta da água’, disponível em: https://medium.com/a-conta-da-agua/aqui-ainda-passa-um-rio-bcac2ed7eff7
NEISTEIN, Gabriel. percurso córrego do sapateiro. Google My Maps, disponível em: bit.ly/córrego_do_sapateiro